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02 fevereiro 2023

[Exposição] A Conversão de Naamã | 2 Reis 5.1-19

2 Reis 5.1-19 

Aqui temos a história de Naamã, o comandante militar do exército do rei da Síria. O relato da sua conversão é contada em termos dramáticos, impressionantes e memoráveis.

O verso 1 começa explicando quem era Naamã e qual a sua posição no reino da Síria: “Naamã, comandante do exército do rei da Síria, era grande homem diante do seu senhor e de muito conceito, porque por meio dele o Senhor tinha dado a vitória à Síria. Ele era herói de guerra, porém sofria de lepra”.

Naamã era um comandante valente nas batalhas, era retratado com grandeza pelo seu rei, Ben-Hadade II. Pelo posto que ocupava, era o segundo no poder. Era também honrado pelo povo sírio. Porém, mesmo com todo prestígio, autoridade e riqueza, ele era um homem condenado, pois debaixo do seu uniforme escondia-se um corpo de um leproso.

Na Síria, a lepra apenas incapacitava as pessoas das suas obrigações; Naamã, estando leproso, já não podia mais obter vitória para a Síria, o que já causava sérias preocupações. Pelo contexto, pode-se dizer que a lepra estava em seu estágio inicial, pois no verso 11 é dito que a infecção estava limitada a um único lugar. No entanto, a doença tem a tendência de se espalhar caso não seja tratada e até levar à morte.

Um ponto a se observar aqui, é quando o texto diz: “..por meio dele [Naamã] o Senhor tinha dado a vitória à Síria”. Este ponto específico da narrativa revela que o Senhor já havia operado em seu favor, dando-lhe a vitória. É um testemunho da soberania e providência de Deus mesmo sobre aqueles que não o reconhecem como Deus. Os comentaristas não são unânimes, mas há quem diga que essa vitória foi sobre os assírios. Jeová é o Deus de Israel e da aliança com seu povo e pode usar qualquer pessoa, salvo ou não, israelita ou não, para realizar sua vontade (ver Is 44.28; 45.13; Ez 30.24,25).

No verso 2, temos um relato que aparentemente não tem nada a ver com a narrativa, porém, é um relato que revela os atos de Deus sendo executado na história dos homens. Um pequeno registro que mostra a forma sutil como Deus trabalha em sua providência: “Tropas saíram da Síria, e da terra de Israel levaram cativa uma menina, que ficou ao serviço da mulher de Naamã”.

A menina havia sido trazida de uma vila saqueada para servir à mulher de Naamã. E isso revela a bondade do Senhor ao permitir que Naamã sequestrasse a menina israelita para casa a fim de servir à sua esposa.

No verso 3, temos o ponto crucial da providência divina que marcaria para sempre a história de Naamã: “Um dia a menina disse à sua senhora: — Quem dera o meu senhor estivesse na presença do profeta que está em Samaria; ele o curaria da sua lepra”. A criança testemunhou humildemente de sua fé para a sua senhora. É como se ela tivesse dito: “em Israel há um Deus que pode curá-lo”. Ela mostrou compaixão pela doença de Naamã. Suas palavras foram tão convincentes que fez a mulher contar esse testemunho ao marido que por sua vez foi contar ao rei.

No verso 4 lemos: “Então Naamã foi contar isso ao seu senhor, dizendo: — Assim e assim falou a jovem que é da terra de Israel”. Talvez Naamã se alegrou com a possibilidade de ser curado e contou ao rei na esperança de receber autorização para sair da Síria.

Nos versos 5 e 6 temos: “O rei da Síria respondeu: — Vá! Eu enviarei uma carta ao rei de Israel. Então Naamã partiu e levou consigo trezentos e quarenta quilos de prata, setenta e dois quilos de ouro e dez mudas de roupa. Levou também ao rei de Israel a carta, que dizia: ‘Tão logo esta carta chegar a você, saiba que eu lhe enviei Naamã, meu servo, para que você o cure da sua lepra’.".

Obviamente que o rei Ben-Hadade II seguiu o protocolo de enviar uma carta ao rei Jorão, pois essa era a prática que existia nas relações internacionais. Mas tanto Naamã quanto Ben-Hadade II cometeram pelo menos 2 equívocos aqui. Primeiro, ao pensarem que a atuação do profeta Eliseu estivesse debaixo das ordens do rei Jorão, pois a carta foi direcionada ao rei. Segundo, ao pensarem que, ao pedirem um favor, estariam sujeitos a darem presentes pelo favor recebido.

Na comitiva, foi levado mais de 300 kg de prata e mais de 60 kg de ouro, além de roupas e vestidos caros. A menina não mencionou nada a respeito de “presentes” para que o profeta fizesse um milagre.

No verso 7 lemos a atitude do rei Jorão à visitação da comitiva síria: “Quando o rei de Israel acabou de ler a carta, rasgou as suas roupas em sinal de medo e disse: — Por acaso sou Deus, com poder de tirar a vida ou dá-la, para que este envie a mim um homem para eu curá-lo de sua lepra? Como vocês podem notar e ver, ele está procurando um pretexto contra mim”.

O rei Jorão poderia ter se aproveitado do pedido de favor do inimigo para honrar ao Senhor e construir a paz entre a Síria e Israel, mas ele não aproveitou essa chance. Mesmo sabendo que em Israel havia um profeta que poderia curar Naamã, o rei de Israel Jorão ignorou esse fato. Ele sabia que a missão de Israel era dar testemunho às nações ímpias ao seu redor (ver Is 42.6; 49.6). Mas as preocupações de Jorão não eram de caráter espiritual, e sim pessoal e político e ele interpretou a carta como uma declaração de guerra.

Ao que parece, Jorão encarava a vida de modo pessimista, isso fica claro pela perspectiva que ele expressou ao tirar as conclusões precipitadas. Além disso, o período de reinado de Jorão foi marcado pela baixa espiritualidade em Israel, e quando ficaram sem água, ele não creu que Eliseu seria capaz de prover água para os três exércitos (ver 2 Reis 3.10,13).

Nos versos 8 e 9 lemos: “Mas, quando Eliseu, homem de Deus, ouviu que o rei de Israel havia rasgado as suas roupas, mandou dizer ao rei: — Por que o senhor rasgou as suas roupas? Deixe-o vir a mim, e ele saberá que há profeta em Israel.

Então Naamã foi com os seus cavalos e os seus carros e parou à porta da casa de Eliseu”. O profeta Eliseu estava em sua casa, em Samaria, mas sabia o que estava acontecendo no palácio do rei Jorão pois Deus não esconde nada dos seus servos daquilo que precisam saber (ver Am 3.7).

O rei não poderia fazer coisa alguma, mas o profeta era um canal do poder de Deus. Eliseu sabia que Naamã precisava ser humilhado antes de receber a cura. Acostumado com os protocolos do palácio, o comandante estimado esperava ser reconhecido publicamente e receber expressões de honrarias exageradas pelos presentes que havia trazido consigo.

O profeta fez Naamã percorrer mais 50 km até a sua casa. Porém, Eliseu sequer saiu de casa para receber Naamã. Em vez disso, enviou um mensageiro instruindo o comandante a percorrer mais 50km até o rio Jordão. Lá ele deveria mergulhar 7 vezes para se purificar e ficar curado da lepra. É o que vemos no verso 10: “Eliseu lhe mandou um mensageiro, dizendo: — Vá e lave-se sete vezes no Jordão, e a sua carne será restaurada, e você ficará limpo”.

Provavelmente Naamã já estivesse meio que se chateando com a situação. Primeiro se dirigiu ao rei, na cidade de Samaria (distante de Damasco, capital da Síria, uns 150km). Daí, os eventos que se sucederam fizeram ele ir até a casa do profeta. Chegando lá, o profeta, através de um mensageiro, pede pra ele ir até a um rio que dista mais 50 km!

Daí lemos no versos 11 e 12 sobre o aborrecimento de Naamã: “Mas Naamã ficou indignado e se foi, dizendo: — Eu pensava que ele certamente sairia para falar comigo, ficaria em pé, invocaria o nome do Senhor, seu Deus, passaria a mão sobre o lugar da lepra e restauraria o leproso. Por acaso não são Abana e Farfar, rios de Damasco, melhores do que todas as águas de Israel? Será que eu não poderia me lavar neles e ficar limpo? Deu meia-volta e foi embora muito irritado”.

O general Naamã enfurece-se e a causa fundamental dessa ira foi o seu orgulho. Ele já havia decidido em sua mente como o profeta iria curá-lo, mas não é assim que Deus trabalha.

Deus já havia começado a trabalhar no orgulho de Naamã. Ele percebeu que o rei Jorão não era capaz de curá-lo, percebeu que o profeta, além de não ter ido ao palácio, mandou mensagem que fosse até a casa dele. Chegando na casa do profeta, foi recebido não pelo dono da casa mas sim por um mensageiro. Além disso, deveria mergulhar num rio sujo não uma, mas sete vezes.

E pensar que ele era um grande general, o segundo no comando da Síria! Naamã já havia determinado de que modo o profeta deveria realizar a cura e se zangou pelo fato do homem de Deus não seguir com aquilo que ele esperava.

Por acaso é diferente dos dias de hoje? As pessoas desejam ser salvas de seus pecados participando de rituais religiosos, filiando-se a uma denominação, dando dinheiro à igreja, mudando de vida, fazendo boas obras e outras práticas semelhantes… Tudo isso em substituição a uma ação bem simples: depositar sua fé em Jesus Cristo. Só isso! É exatamente isso que Tito nos ensina: “... não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo a sua misericórdia. Ele nos salvou…” (Tt 3.5).

Naamã tinha um outro problema: preferia os rios de Damasco em vez do lamacento rio Jordão. Acreditava que a cura viria da água, de modo que o mais lógico era pensar que, quanto melhor a água, melhor a cura! As águas em Abana e Farfar vinham das neves das montanhas ao redor de Damasco, de modo que era pura e fresca. Talvez ele estivesse pensando que seria melhor percorrer 160 km de volta para Damasco a percorrer só mais 50 km e obedecer a Deus. Ele estava tão perto da salvação, e ao mesmo tempo longe! Mas Naamã precisava aprender que os caminhos do Senhor são mais elevados que os nossos (ver Is 55.8,9).

Lemos nos versos 13-15a: “Então os seus oficiais se aproximaram e lhe disseram: — Meu pai, se o profeta tivesse dito alguma coisa difícil, por acaso o senhor não faria? Muito mais agora que ele apenas disse: ‘Lave-se e você ficará limpo.’ Então, Naamã desceu e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a palavra do homem de Deus; e a sua pele se tornou como a pele de uma criança, e ficou limpo. Depois ele voltou ao homem de Deus, ele e toda a sua comitiva”.

Mas uma vez vemos o Senhor usando pessoas ímpias para cumprir com os seus propósitos. Os servos de Naamã (pagãos) o persuadiram a desistir do orgulho humano e, sendo convencido, foi curado. A fé que não conduz à obediência na verdade não é fé. Quando o comandante saiu da água, viu que havia se curado da lepra e sua pele estava como a pele de uma criança. Usando a linguagem do Novo Testamento, havia nascido de novo (ver Jo 3.3-8). O orgulhoso Naamã tinha se tornado um homem novo, humilde, puro, semelhante a uma criança. No Novo Testamento é comum usar a figura de uma criança para representar a pessoa convertida, regenerada, nascida do alto: “Em verdade lhes digo: se vocês não se converterem e não se tornarem como crianças, de maneira nenhuma entrarão no Reino dos Céus” (Mt 18.3).

Neste momento, Naamã perdeu o orgulho e perdeu a lepra. Essa é a sequência pela qual os pecadores orgulhosos e rebeldes são convertidos.

Vemos nos versos 15b-17: “Veio, pôs-se diante dele e disse: — Eis que, agora, reconheço que em toda a terra não há Deus, a não ser em Israel. E agora, por favor, aceite um presente deste seu servo. Porém ele respondeu: — Tão certo como vive o Senhor , em cuja presença estou, não aceitarei nada. Naamã insistiu com ele para que aceitasse, mas ele recusou. Então Naamã disse: — Se você não quer, então peço que seja permitido a este seu servo levar duas mulas carregadas de terra; porque este seu servo nunca mais oferecerá holocausto nem sacrifício a outros deuses, a não ser ao Senhor”.

Como todo convertido, Naamã tinha muito a aprender. Os primeiros comportamentos após a conversão refletem isso. Seu desejo de recompensar o profeta foi natural, mas se o Eliseu tivesse aceitado os presentes, daria a entender que todo o crédito da cura fosse dele e tiraria a glória que pertencia a Deus. Além disso, teria passado uma imagem para Naamã a impressão de que seus presentes de alguma forma tinham relação com a cura. Toda a glória deve ser dada a Deus, tão somente. O Senhor nos salva para o louvor da glória de sua graça (ver Ef. 1.6, 12, 14). Abraão recusou os presentes do rei de Sodoma, Daniel recusou a oferta do rei, Pedro e João rejeitaram o dinheiro de Simão (ver Gn 14.17-24; Dn 5.17; At 8.18-24).

Depois, Naamã perguntou se poderia levar consigo uma porção da terra de Israel para a Síria, a fim de usá-la em sua adoração. Naquele tempo, as pessoas acreditavam que os deuses de uma nação habitavam naquela terra, e quem saísse daquela terra deixava o deus para trás. Por causa desse entendimento, Naamã queria uma porção da terra como lembrança de sua “bênção”.

Nos versos finais 18 e 19, vemos Naamã surpreendendo com um pedido. Pela sua posição de comandante do exército sírio, muito provavelmente ele acompanhava o rei Ben-Hadade II ao templo de Rimom, um deus sírio equivalente ao deus Baal. E ele faz o seguinte pedido: “Mas que o Senhor Deus perdoe o seu servo uma coisa: quando meu senhor, o rei, entrar no templo de Rimom para ali adorar, e ele se encostar no meu braço, e eu também tiver de me encurvar no templo de Rimom, quando assim me prostrar no templo de Rimom, que o Senhor Deus perdoe este seu servo por isso. Eliseu lhe disse: — Vá em paz. Quando Naamã tinha se afastado certa distância…”.

Naamã estava disposto a realizar esses rituais externamente, mas queria que Eliseu soubesse que não o faria de coração. Ele anteviu que sua cura e sua vida transformada teriam impacto sobre a corte do rei. Ao ouvir o pedido de Naamã, Eliseu apenas disse: “vá em paz”. Essa era a bênção habitual da aliança que os israelitas invocavam quando as pessoas partiam de viagem. Vemos Naamã com a sensibilidade de não mostrar que estaria adorando ídolos. Ele recebeu garantias de que Deus compreendia o seu coração. O profeta iria sim interceder por ele e confiar que Deus o usaria em seu novo ministério na Síria. Que grande testemunho Naamã poderia ser naquele país de trevas!

Aplicações práticas

A experiência de Naamã com Eliseu ilustra para nós a obra da graça de Deus ao salvar os pecadores perdidos.

1) Assim como a lepra, o pecado não se atém à superfície, mas atinge as camadas mais profundas, espalha-se, contamina, isola e só serve para ser queimado pelo fogo (ver Lv 13).

2) Vemos a perspectiva em desenvolvimento do Senhor como controlador de todos os eventos, mesmo os eventos de ímpios, nos caso da vitória da Síria do verso 1 e do conselho dos servos de Naamã no verso 13.

3) Temos o evento que corrobora com o ensino do Novo Testamento registrado em Romanos 8.28: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” no caso da menina raptada. Deus aprouve que aquela criança fosse sequestrada e raptada para servir de escrava numa casa onde ela seria usada para dar o "pontapé inicial” dos eventos futuros que acarretaria na conversão de Naamã.

4) Nunca subestime o poder de um simples testemunho, pois Deus pode pegar as palavras dos lábios de uma criança e levá-las aos ouvidos do rei.

5) Ainda sobre o testemunho da criança, ela não levou para o lado pessoal o fato de ter sido tirada de sua família. Ela se lembrou que Deus poderia salvar aquele que o sequestrou e mesmo assim “soltou” a possibilidade de salvação de Naamã. Não desejou que ele morresse de lepra, mas se comoveu e não permitiu que seu coração se enchesse de vingança.

6) Nossa salvação não é obtida dando presentes a Deus, mas sim recebendo pela fé sua dádiva de vida eterna (ver Ef 2.8; Jo 3.16, 36; Rm 6.23). Não sejamos presunçosos de achar que a melhor maneira de Deus agir é de acordo com o nosso “achismo”, pois quem decide como agir é Ele, e não nós.

7) Quanto mais nos afastamos de Deus e de sua Palavra, mais longe ficaremos de enxergar as oportunidades que Deus coloca diante de nossos olhos para anunciar salvação aos perdidos, e muito menos de ver os atos providenciais de Deus em nossa vida.

8) Humildade e fé produzem libertação a todos. Arrogância, soberba e orgulho são fatores cruciais para nos afastarmos de Deus e nos aproximarmos da perdição. Antes de os pecadores poderem receber a graça de Deus, devem sujeitar-se à vontade do Senhor. Como diz Donald Grey Barnhouse: “Todos têm o privilégio de ir para o céu à maneira de Deus ou para o inferno à sua própria maneira”.

9) Devemos ficar alertas à constante exposição em ambientes que nos enfraquecem para que não subestimemos nosso poder de resistência.

02 fevereiro 2021

As vacinas contra a COVID-19 e a Providência Divina

Jean Marques Regina 
Thiago Rafael Vieira 
Wladymir Soares de Brito Filho 


No último dia 17/01/2021, a diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, aprovou, por unanimidade, a autorização temporária de uso emergencial da vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, e da vacina Covishield, produzida pela farmacêutica Serum Institute of India, em parceria com a AstraZeneca/Universidade de Oxford/Fiocruz.

Apesar desta excelente notícia, que expressa o cuidado de Deus – ou, como veem muitas tradições teológicas – a graça comum concedida a toda a humanidade, neste episódio exemplificada pela inteligência e competência de todos os seres humanos responsáveis por esta importante conquista, muitos cristãos têm adotado uma postura de que fazer uso das vacinas seria um sinal de “falta de fé”. Para estes, confiar na medicina humana seria desconfiar da soberania divina em proteger o seu povo das doenças e calamidades deste mundo.

Para abordar esta delicada, complexa e urgente situação à luz das Escrituras, e, por pelo menos duas lentes teológicas, a reformada e a luterana, é preciso trazer novamente aos corações e mentes da igreja brasileira dois elementos da cosmovisão cristã que são extremamente importantes para o dia a dia do povo de Deus nesta Terra: a graça comum, a doutrina da vocação e o respeito às autoridades governamentais.

Segundo o conceito da graça comum, Deus abençoa a humanidade em geral com virtudes e qualidades, independentemente das convicções religiosas e políticas das pessoas (Mateus 5.45). Nas palavras de Wayne Grudem, a graça comum de Deus na esfera intelectual resulta na capacidade dos seres humanos, crentes ou descrentes, de captar a verdade e distingui-la do erro, experimentando crescimento em conhecimento que pode ser usado na investigação do universo e na tarefa de dominar a Terra. Isso significa que toda ciência e tecnologia desenvolvida pela humanidade é resultado da graça comum de Deus, permitindo-lhes fazer descobertas e invenções dignas de nota.

Para facilitar a compreensão, vamos fazer uso de uma “parábola” certamente já conhecida de todos: certa feita uma pequena cidade foi devastada por uma tremenda enchente, daquelas de inundar tudo e, pela visão do Google Earth, somente se viam os telhados. E a água continuava a subir e a chuva continuava a cair. Nela havia apenas um homem (todos já tinham “escapulido”), que subiu até o telhado e de lá começou a orar pedindo a Deus para que a chuva parasse. Apareceu então uma canoa. O canoeiro gritou: “Venha, se salve!”, mas o homem respondeu: “Não posso! Estou orando e o Senhor vai fazer essa chuva parar!”. A água, contudo, continuou subindo. Apareceu então um barco a motor. Chamaram-no, mas ele deu a mesma resposta. Por fim, apareceu um helicóptero dos Bombeiros. Desceram uma cadeirinha até ele numa corda. Mas ele deu sinal que não ia, porque estava orando para a chuva parar. Aconteceu que a chuva aumentou, o homem foi levado pela correnteza, não sabia nadar e morreu afogado. Logo que chegou ao Céu, já foi brigando com o primeiro que encontrou, que foi São Pedro: “Deus não atendeu à minha oração!” disse ele. São Pedro então respondeu: “Como não atendeu, filho, se Deus lhe mandou a canoa, o barco a motor e até um helicóptero?”

Esta conhecida história serve para ilustrar como Deus “fala na língua dos homens”, valendo-se de pessoas de “carne e osso” para avançar seus propósitos na soberana condução da história. Fruto de uma interpretação profundamente alegórica das Escrituras Sagradas, sobretudo do Antigo Testamento, uma parcela considerável da igreja evangélica brasileira espera que as intervenções de Deus em favor do seu povo sejam sempre sobrenaturais, espetaculares e místicas (elas até podem acontecer). Contudo, o relato das Escrituras mostra Deus agindo em favor de seu povo por meio do imperador Ciro II, ao permitir que os judeus retornassem a sua terra natal (Esdras 1); do imperador Xerxes I, ao tornar sem efeito o édito de extermínio contra os judeus engendrado por Mordecai (Ester); ou mesmo usando a mula do profeta Balaão para abençoar o povo de Deus (Números 22.5-33).

Portanto, sem a pretensão de querer dar ordens ao povo de Deus quanto ao que é certo ou errado, mas com a firme intenção de influenciar uma tomada de decisão que seja mais racional, piedosa e ponderada, nosso propósito é faze-lo refletir, especialmente aqueles que adotam uma postura contrária à vacinação que, ao orarem e conversarem com Deus, considerem se a vacina não é exatamente um destes barquinhos, mandados por Deus, para salvar o homem ilhado pela chuva.

Neste aspecto, Lutero é enfático ao explicar o Primeiro Artigo do Credo Apostólico. Na expressão “Criador do Céu e da Terra” abarca pelo menos dois grandes princípios. O primeiro é que na Criação estão contidas todas as medidas para a preservação da vida, inclusive a racionalidade, a genialidade o espírito criativo e a inteligência humana para a busca do bem de todos, o bem comum. O segundo é que este meio de Seu cuidado e agir se dá justamente através das outras pessoas, que são chamadas (vocacionadas) e dotadas de talentos específicos – no caso, o saber científico, que irá operar em nosso favor. Esta visão da graça comum, seria o equivalente, na tradição teológica luterana, ao que chamam de “bênçãos do Primeiro Artigo”. Deus-em-Cristo ama a humanidade e a preserva.

Esta mesma questão da vacinação e o povo de Deus deve ser abordada, ainda, sob o prisma do testemunho do evangelho na ordem social. Relatos como os de Romanos 13.1-7, 1ª Pedro 2.13-14 e Mateus 22.15-22 mostram como como o cristão, transformado pelo Evangelho de Cristo, deve se comportar em relação às autoridades governamentais legitimamente constituídas, promovendo a justiça de Deus na vida diária.

Paulo, Pedro e Mateus nos ensinam que há um papel secular a ser desempenhado pelas autoridades governamentais legítimas: todos os seres humanos, cristãos ou não, devem obedecer às leis de seu país (se comportar como bons cidadãos), porque não há autoridade legítima que não proceda de Deus e não tenha sido por ele instituída. A autoridade governamental é estabelecida como uma serva de Deus para o bem do povo, tendo como objetivo principal recompensar aqueles que fazem o bem e punir aqueles que praticam o mal, mantendo a ordem na sociedade, como já dizia Martinho Lutero. Por tais razões, somos chamados a honrar as autoridades que Deus estabelece sobre uma nação por dever de consciência, e não por medo de coação.

Como afirma Karl Barth, aquele de quem procede todo o poder e por meio de quem toda autoridade existente é estabelecida é Deus, o Senhor, o Criador e o Redentor, aquele que elege e rejeita. Isso significa dizer que os poderes constituídos são medidos tendo Deus por referência, assim como são todas as coisas humanas, temporais e concretas. Deus é o seu princípio e seu fim, sua justificação e sua condenação, seu “sim” e seu “não”.

Numa aplicação direta destes conceitos, cabe trazer à memória a doutrina reformada da soberania das esferas sociais, cuja origem remonta ao reformador João Calvino (1509-1564) e cuja sistematização se deu pelas mãos do teólogo holandês Abraham Kuyper (1837-1920). Trata-se da noção de que a sociedade é composta por várias esferas independentes, igualitárias e soberanas entre si (como igreja, família, estado, trabalho, arte e ensino). Como afirmava Abraham Kuyper, “não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: É meu!”.

Todas as esferas que compõem a ordem social possuem o mesmo nível de importância e hierarquia entre si, e estão todas debaixo da soberania de Deus, sendo regidas por Ele. Estas dimensões da sociedade humana possuem suas próprias missões, propósitos e responsabilidades diferenciadas, razão pela qual os limites de atuação dentro de cada esfera devem ser respeitados.

Já o pensamento luterano sobre a doutrina da vocação, conforme já dito anteriormente, faz com que atuemos em nossos chamados como verdadeiras “máscaras de Deus”, onde Ele atua através de suas criaturas. E, neste ponto, importante notar a conexão. O “reino da fé” é relativo ao Céu; o “reino do amor” à Terra. Não podem ser confundidos, mas não são desconexos, como diria Gustav Wingren. E arremata: “Toda a obra de Deus é posta em movimento mediante a vocação: ele modifica o mundo e espalha sua misericórdia sobre a humanidade oprimida”.

Diante destas diretrizes para a relação entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus traçadas pela tradição cristã, temos que o cristão tem o dever de, por “amor ao Senhor”, se submeter às autoridades legitimamente constituídas, enquanto estas estiverem “recompensando o bem e punindo o mal”. Dentre estas autoridades estão aquelas responsáveis pelas questões sanitárias, tal como a ANVISA no caso brasileiro.

A fundamentada decisão da autoridade sanitária brasileira atestou, de forma unânime, a segurança e a eficácia das vacinas, debelando desconfianças e incertezas que acompanharam todas as fases de seus processos de desenvolvimento. Há de se respeitar, portanto, a autoridade da ciência e da medicina sobre esta área específica da vida humana. O povo de Deus não pode permitir que ideologias políticas quaisquer, verdadeiras idolatrias modernas conforme o alerta de David Koyzis, contaminem a decisão sanitária quanto ao uso de vacinas.

Portanto, diante de todos os fatos que levaram à autorização temporária de uso emergencial das vacinas CoronaVac e Covishield pela ANVISA no último dia 17/01/2021, é legítimo ao cristão se recusar a ser vacinado? Entendemos que o cristão está autorizado pelas Escrituras a ser desobediente apenas quando o governo comanda o mal, ou seja, apenas quando obedecer à autoridade importa em agir de forma expressamente contrária à Palavra de Deus.

Nas palavras de Franklin Ferreira, quando duas ordens diretas colidem, o cristão tem a liberdade de fazer uma escolha, e esta deve ser feita sem hesitação: ficar do lado de Deus, em vez de obedecer às autoridades que não estejam cumprindo com os seus chamados (Atos 5.29). Assim, quando as autoridades se tornam tiranas ou opressoras, deixam de ser autoridades ordenadas por Deus. Quando os cristãos desobedecem e resistem a elas, não estão resistindo à ordem de Deus.

Feito este alerta, entendemos que não há motivos para enxergar a vacinação como uma decisão da autoridade sanitária que contraria expressamente a vontade de Deus para o seu povo, não havendo, portanto, razões legítimas para que a igreja cristã no Brasil deixe de cumprir a orientação bíblica de obediência.

Concluímos assim que fazer uso das vacinas não é um sinal de “falta de fé”, muito menos de falta de confiança na providência divina, mas um claro sinal da graça comum que Deus, ou do cumprimento firme da ordem natural que estabeleceu no cuidado de uns com os outros através das vocações, em sua maravilhosa bondade e generosidade, derrama sobre toda sua criação, permitindo aos homens a inteligência necessária para desenvolver meios seguros e eficazes para pôr um fim a esta pandemia de Covid-19. Façamos assim a vontade Deus, que é sempre boa, perfeita e agradável.